ESTILO DE VIDA VINTAGE: UMA BUSCA DE REFERÊNCIAS ESTÁVEIS?




A cultura pós-moderna traz a marca da fragmentação, do rompimento de

vínculos, da instabilidade, do descartável, efêmero e virtual. Tudo está em contínuo

movimento, exigindo que acompanhemos o ritmo acelerado das mudanças. O trabalho

se desregula e perde a estabilidade, dando espaço para novas formas organização,

visando à adequação a mercados cada vez mais abertos, competitivos, incertos e

voláteis. Isso repercute no trabalhador, que agora deve ser mais eficiente tecnicamente,

flexível , ‘polifuncional’ e, principalmente, mobile.

Nas empresas, a reutilização de produtos e ideias é frequentemente vista como

obsoleta. Observa-se a falta de continuidade, o abandono de projetos iniciados, o

imediatismo, a ausência de registros e documentação, ausência de follow-up, falta de

rotina, pouca atenção a processos, desvalorização do trabalho operacional e turn over

elevado . Os riscos para a organização são evidentes.

O mesmo princípio da obsolescência aparece nas relações interpessoais: tanto no

trabalho, como na vida pessoal. A ausência de segurança e estabilidade obriga as

pessoas a se adaptarem continuamente à mudança, a exercitarem a renúncia e o

desapego. A depressão é um sintoma disso. Bauman (2001) denominou esse novo estilo

de vida de modernidade líquida. A pandemia pelo novo coronavírus acentuou essa

situação, pois a incerteza quanto ao futuro, prevista por Toffler (1980) ao afirmar que

ninguém sabe ao certo o que o futuro nos reserva, ou o que funcionará melhor na

sociedade pós-industrial, tornou-se a única certeza.

Como movimento espontâneo, talvez numa tentativa de equilibração e de resgate

da estabilidade perdida, observamos, na esfera da vida pessoal, a valorização de faça

você mesmo, do contato direto com a matéria, e permite que o indivíduo produza algo

concreto, fruto direto do seu trabalho pessoal e manual, cuja autoria não pode ser

contestada: culinária, scrap book, patchwork, jardinagem, trabalhos manuais, cerâmica,

etc. Não foi por acaso que fazer pão em casa tornou-se uma das atividades mais comuns

durante o período da quarentena pelo novo coronavírus em todas as partes do mundo,

cujas imagens foram postadas com orgulho nas redes sociais.

No design, o novo estilo de vida agora valoriza o material bruto, a madeira

lavrada, a pedra sem polimento, o revestimento rústico, o material reciclado e reciclável,

o reuso. Um mundo sem maquiagem, que remete à autenticidade. Seria uma forma de

nos contrapormos ao que é fake?


A tatuagem, que decora os corpos de grande parte da população, nos convida à

reflexão. Não estaria esse fenômeno associado, também, à necessidade de estabilidade?

Registrar para sempre, não esquecer jamais, gravando no próprio corpo, nomes e

imagens com um significado especial.

Esse fenômeno é muito bem descrito por Joonas Rokka (2021), ao mostrar que

essa tendência já está presente nos ambientes de contracultura, distantes do mundo

digital. Segundo seu estudo, os representantes da Geração Y, 



tendem a estar cada vez

menos interessados no consumo massificado dos conteúdos online, sentindo-se atraídos

pelo analógico, único e especial. Essa tendência já foi prevista pro Toffler (1980), na

década de 1980. Será essa a explicação para o ressurgimento do interesse pelos discos

de vinil, pelos elementos decorativos vintage, retrô, em vez do mobiliário moderno

produzido em larga escala; pelo slow food ao invés do fast food? Os movimentos

políticos de direita, mais conservadores, também nos remetem ao passado: “Bem ou

mal, eu conheço, sei como é”.

No modelo teórico szondiano, que fundamenta o HumanGuide (2011), o fator

Estabilidade corresponde à necessidade de manter e conservar, de apego ao passado, de

continuidade e de preservação do que já foi. Para Szondi, quando esse aspecto não é

atendido, a pulsão correspondente pode manifestar-se como depressão (Szondi, 1980).

Interessante observarmos que a depressão, considerada a doença do século, não

teve sua prevalência aumentada durante a pandemia pelo novo coronavírus (Brunoni e

cols., 2021), provavelmente porque as restrições impostas pela quarentena tenham tido

um impacto muito maior sobre a possibilidade de satisfação de outras necessidades

pulsionais, principalmente aquelas relativas às necessidades socioafetivas, representadas

pelos fatores Contatos e Sensibilidade, restritas pela exigência de distanciamento social

como forma de controlar a propagação do vírus Covid-19.

A desestabilização, efemeridade e perda de consistência, fazem com que o

indivíduo pós-moderno recorra, consciente ou inconscientemente, a mecanismos que

podem lhe devolver a sensação de realidade, e encontre formas e meios de recuperar a

sensação de equilíbrio e de segurança, perdidos. O modelo teórico concebido por Szondi

oferece conceitos que permitem compreender os fenômenos sociais numa perspectiva

psicodinâmica, que vai além da compreensão do que motiva o indivíduo, em particular.

Se compreendermos o indivíduo como alguém que participa ativamente do

caráter transitório do seu tempo, fica claro que a sua essência humana pode ser

transformada pelo Zeitgeist, espírito do tempo. Ao mesmo tempo, que ele favorece


diferentes formas de transtornos mentais e afetivos, e a adoção de diferentes padrões de

comportamento e estilos de vida. Nessa ótica, a nostalgia e a ‘volta ao passado’

correspondem a maneiras de compensar a perda de referências, e a depressão, um

possível sintoma.






Referências

Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar

Brunoni, A., Suen, P., Bacchi, P., Razza, L., Klein, I., Dos Santos, L., . . . Benseñor, I.

(2021). Prevalence and risk factors of psychiatric symptoms and diagnoses before and

during the COVID-19 pandemic: Findings from the ELSA-Brasil COVID-19 mental

health cohort. Psychological Medicine, 1-12. doi:10.1017/S0033291721001719

Rokka, J., Rousi, P., Hämäläinen, V. (2014) ,"Follow Me on Dead Media: Analog

Authenticities in Alternative Skateboarding Scene", in NA - Advances in Consumer

Research Volume 42, eds. June Cotte, Stacy Wood, and , Duluth, MN : Association for

Consumer Research, Pages: 757-757.

Szondi, L. (1980). Introdução à Psicologia do Destino seguido de Análise de

Casamentos. 1st. ed. São Paulo: É Realizações, 2013Toffler, Alvin. A Terceira Onda.

Rio de Janeiro, Record, 1980 (7 a ed.)

Welter, G. M. R. (2011). HumanGuide - Perfil Pessoal Vol 1. 1st. ed. São Paulo:

Vetor Editora Psicopedagógica.

Comentários

  1. ...e quanta sensibilidade nessa reflexão profunda e terna! Obrigada Gisele!

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  2. Giselle – very excellent observation and conclusions. I heard this from you for the first time at the Szondi conference in Budapest 2017 (the SIS Szondi International Society, every third year, but last year Corona, so no conference in Bucharest).

    This phenomena is also an excellent example of trends and antitrends.

    Moreover, I am thinking about another phenomena – how people defend themselves. Something we call in Swedish for “putsbeteende”. Perhaps there is a certain word in English, but I don’t know it. If I translate, then it will be “polish behaviour”. You are afraid, but you don’t act in a rational way. I have a good example from a friend. He was driving fast with his car, when arrived to a curve. Then he put on his turning signal. He did something that he could manage in order to decrease the threat.

    How then to cope with the increasing change speed, if you don’t like to buy/get vintage, get a tattooing, etc? One way is to develop your conceptual ability – to think in an abstract way. I have learnt a lot from my IT experience during many years, i.e. you can’t look at an IT system. You can only see a fragment at a time. However, if you learn how to describe a system on any type of visual media, then you can grasp the IT-system and be in “control”. Figure out what happens, if you change something, etc.

    Managers, who hasn’t good conceptual ability has an increasing problem today. The USA professor Elliot Jacques (1917-2003) had figured out a kind of staircase with increasing ambition levels, so you can identify people’s capacity in this area.

    If I simplify a lot, then it is like this
    1. Declarative problem solving, i.e. you think that you can use a hammer, but it doesn’t work, then you don’t know what to do…
    2. Cumulative problem solving, i.e. you use one tool and add one more, but if that doesn’t work, then …
    3. Serial problem solving, i.e. you do a serial process with steps, but…
    4. Parallel problem solving, i.e. you use two or more serial processes, then you are on the highest level – you can solve any problem;-)

    I have here gone through a test. Then I should analyse a broad phenomena e.g. globalisation in a monologue. Think loud. That was recorded. Then someone recorded on a paper. At last the consultants analysed what you have said. The object was to identify my reasoning – what level.

    In my opinion here you have one big cause, why managers today reach their incompetence level – according to Peter’s Principle (there is a book). A good manager should have the capacity to help people with lower conceptual ability to understand.

    I, myself have a high conceptual ability. This was a great AHA for me, because then I understood why some people couldn’t follow my reasoning. Today I am very observant, if people understand me or not, otherwise no use go on talking in the same way… You have to meet people, where they are.

    P.S. I have articles about Elliot Jacques concept, but I can't see any possibility to add it here...

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