A DITADURA DA IMPESSOALIDADE

 


A qualidade de vida no trabalho e a elevada incidência de burnout tornaram-se temas recorrentes. Em tempos de pós-pandemia, quando temos a sensação de termos nos livrado da ameaça do novo coronavírus, graças à vacinação e a uma maior conscientização da importância de medidas preventivas, nos tornamos vulneráveis a um fator sobre o qual perdemos o controle: o tempo.

Tornou-se lugar comum escutarmos as pessoas se dizerem saudosas da calma e da tranquilidade que experimentaram durante o ápice da pandemia, apesar de tudo. À medida que fomos nos adaptando à nova realidade, graças ao surgimento de ferramentas tecnológicas e à adoção do teletrabalho, o nosso tempo passou a ser cronometrado e ditado por fatores que não mais controlamos. Nossas agendas escaparam ao nosso controle, pois o dia e horário dos compromissos raramente são negociados. A espontaneidade de uma visitinha para tomar um café, ou para fazer um simples telefonema, cedeu lugar a um agendamento prévio. Não é de bom tom ligar para as pessoas sem antes consultá-las via WhatsApp. Calls, videoconferências, coffee breaks, virtual meetings passaram a preencher os horários da agenda por meio de convites eletrônicos. Com uma agenda muito apertada, sem intervalos entre os muitos compromissos, e com a percepção de que não é possível falar não, nos vemos impossibilitados de atendermos nossas necessidades fisiológicas, que estao na base da pirâmide de Maslow: beber água, ir ao banheiro, dar uns passos, nos espreguiçarmos, etc. Comemos diante da tela do computador, com a câmera desabilitada, obviamente. 


Quando entramos em uma reunião virtual com um minuto de “atraso”, nos sentimos envergonhados e nos desculpamos pelo atraso. Em outros tempos, ao cumprirmos um compromisso, a reunião era precedida por uma conversa informal, acompanhada de um cafezinho ou um copo d´água, e era comum aguardarmos na então existente sala de espera. A espera fazia parte de nossa vida, assim como a tolerância à frustração de não sermos atendidos imediatamente. Mas, esse tempo dedicado à espera deixou de existir. Não ousamos deixar o outro esperar por nós, da mesma forma como não queremos perder o nosso tempo esperando o outro. Nos tornamos impacientes, intransigentes e, por que não dizer, controladores também.


O distanciamento social, que nos privou da possibilidade de atendermos às nossas necessidades sócioafetivas, ganhou nova forma: a impessoalidade. Não há mais espaço para a negociação, para o exercício da persuasão, para a prática da empatia. Esbarramos na barreira dos bots, das URAs e dos algoritmos, cuja implantação foi acelerada durante a pandemia. A solução dos problemas e a superação de pequenos obstáculos cotidianos não está mais nas mãos de pessoas, mas do “sistema”. Esse tal “sistema”  ora cai, ora fica lento, e muitas vezes trava. Sem falar da impossibilidade de realizar determinadas ações, não previstas e programadas previamente. Nos vemos diante de um muro intransponível. Nos deparamos com o “não” imposto pela tecnologia. Pela mesma tecnologia que nos impôs a camisa de força do tempo cronometrado, das métricas calculadas estatisticamente, dos fits e matchs, que não levam em consideração a dimensão humana, o olhar humano, a empatia e o entendimento da singularidade da situação e do ser humano.


Afinal, o que é normal? 

O normal corresponde ao comum e usual que não foge aos padroes. Não considera os pontos “fora da curva”,  pois tanto faz estar acima ou abaixo da média. O normal nos nivela e nos homogeneíza, e não considera a singularidade humana. Entretanto, somos diversos, essencialmente diversos. Somos seres únicos, singulares. 


No esforço para nos adaptarmos a essa nova realidade, fria e impessoal, cronometrada rigidamente por máquinas e algoritmos, nos consumimos e adoecemos. Talvez o burnout e as doenças associadas ao trabalho representem uma porta de saída para o indivíduo, ainda que muito dolorosa e extrema. Afinal, ou paramos voluntária e conscientemente, ou o nosso corpo irá nos obrigar a parar. Embora a máquina não conheça limites, temos de aprender a reconhecer e respeitar os nossos limites e, principalmente, não ter vergonha de expressá-los e, por que não, pedir para que sejam considerados, sem culpa ou receio de sermos punidos por isso. 


A revolução Industrial passou a tratar o ser humano como um recurso humano, que realiza atividades operacionais coordenadas com seus colegas de trabalho, controladas rigidamente no tempo e espaço. Em plena era do conhecimento, na qual o trabalho é essencialmente mental, relacional e de solução de problemas, continuamos atrelados ao controle externo do nosso tempo, porém sem a necessidade de estarmos no mesmo espaço.


Caso você trabalhe com pessoas, e acredite que a situação que vivemos é normal,  caracterizando o “novo normal”, e esteja procurando formas de avaliar o impacto que esse novo modus operandi corporativo tem sobre a saúde e bem-estar das pessoas, sugiro dirigir o seu olhar para o sujeito, e deixar de tratá-lo como um objeto. Conhecer suas necessidades motivacionais e as situações que demandam maior investimento de energia para adaptar-se a elas adquire grande importância, e se mostra útil para o adequado planejamento de ações preventivas e terapêuticas. Caso contrário, teremos uma nova epidemia no âmbito da saúde mental. O HumanGuide pode se tornar um valioso aliado na busca da promoção da saúde no âmbito do trabalho





Comentários

  1. Parabéns Gisele pelo texto. Todos nós teremos que ajudar a combater esta ‘impessoalidade’ pois acabamos também, muitas vezes sem nos darmos conta, sendo agentes e/ou coniventes com esta realidade.

    ResponderExcluir
  2. Excelente! Precisa obrigado por tanto. Eu estou mais controlador mesmo

    ResponderExcluir
  3. Good point! If there are radical changes, then look for the new patterns and how you can adopt in a human way. I am just now reading the book "The Obstacle is the way". It is about how to apply the stoicism in a practical way. Can be recommended!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas