CARTA ABERTA PARA OS PROFISSIONAIS DA ÁREA DE GESTÃO DE PESSOAS E AFINS

 





Queremos chamar atenção para um assunto que caiu no esquecimento e que urge ser abordado: oferta de testes de personalidade sem comprovação científica e exercício ilegal da profissão de psicólogo. Não é de hoje que encontramos todo tipo de testes no segmento de Recursos Humanos, com as mais variadas abordagens, ofertados tanto por empresas sérias, como por aventureiros, charlatões, amadores etc. 

Essa situação pode ser resultante do desconhecimento da população sobre os critérios que definem a qualidade de um teste e sobre a legislação vigente. Esse desconhecimento, aliado ao não cumprimento das normas existentes e à inexistência de fiscalização e punição daqueles que aplicam e comercializam testes não certificados favorecem toda sorte de ações que comprometem não só a credibilidade dos testes psicológicos, mas impactam de maneira negativa a vida das pessoas sujeitas à avaliação e tomada de decisão com base em testes sem validade comprovada. Trata-se, portanto, da banalização do processo de avaliação da personalidade e de aptidões específicas.


Essa situação causa danos a todos os atores envolvidos: respondentes, que se submetem a esses testes durante o processo seletivo ou a avaliações que visam ao desenvolvimento de carreira; psicólogos, que a infringem o código de ética ao serem obrigados a utilizar instrumentos não certificados nas empresas em que trabalham; empresas, que tomam decisões com base em dados não confiáveis e estão sujeitas a processos trabalhistas por parte dos colaboradores ou candidatos que se sentem prejudicados ou mal avaliados. 


A avaliação psicológica é um processo técnico científico que permite acessar, partindo de uma demanda inicial, os aspectos psicológicos, cognitivos e comportamentais de um indivíduo ou de um grupo. O resultado obtido deve subsidiar a tomada de decisão ou o acompanhamento dos avaliados. Trata-se de um grande desafio, quando consideramos os diferentes contextos nos quais a avaliação psicológica é utilizada e as especificidades de cada um deles. O contexto organizacional se apresenta como uma área de aplicação da avaliação psicológica com demanda crescente no Brasil, com o objetivo de predizer o comportamento dos profissionais. 

Estamos nos referindo a um mercado composto por centenas de milhares de profissionais, que utilizam ‘testes comportamentais’ com o objetivo de identificar os candidatos com maior aderência com um determinado cargo ou com o prognóstico de apresentar o melhor desempenho. Buscam o ‘fit’ ideal. A crescente demanda por testes de personalidade, apresentados como testes comportamentais pelas empresas, associada à pulverização dos psicólogos no território nacional e à falta de fiscalização por parte dos órgãos competentes, favorecem práticas abusivas por aqueles que não têm interesse em normatizar esse mercado.


O que a maioria da população desconhece é que, à exemplo do que ocorre na área de saúde com a ANVISA, que aprova vacinas, medicamentos e equipamentos médicos com base em critérios científicos, também existem critérios científicos normalizados para a aprovação de testes psicológicos para uso profissional nos mais variados contextos. Os critérios científicos para a construção e validação de testes psicológicos, sejam estes em forma impressa ou digital, seguem diretrizes internacionais. 


O Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos – SATEPSI, implantado em 2003 pelo Conselho Federal de Psicologia após a Resolução 002/2003, foi criado como resposta ao descrédito nos testes de psicológicos pela falta de qualidade técnico-científica das informações disponíveis sobre os instrumentos utilizados até então: testes internacionais não adaptados corretamente para a realidade brasileira; o uso de medidas sem nenhuma validade; a falta de qualidade na prática de avaliação psicológica dos profissionais etc. Isso afetou não só a qualidade das avaliações realizadas, mas, também, suscitou questionamentos sobre sua utilidade. A preocupação dos pesquisadores em Psicologia e das editoras dos testes psicológicos em oferecer instrumentos com qualidade científica e resgatar a credibilidade dos testes psicológicos, muitas vezes tidos como inúteis, imprecisos ou passíveis de manipulação, não é, portanto, um fato recente. 


Vale lembrar que a avaliação psicológica é uma das áreas mais importantes da Psicologia, pois ela possibilita compreender o funcionamento psíquico e comportamental do indivíduo nas mais variadas situações e não se limitam à área clínica ou à avaliação compulsória (CNH, porte de armas, concursos públicos etc.) Não é possível, portanto, desvincular o funcionamento psíquico do comportamento, como muitos pretendem fazer acreditar. 


O SATEPSI é um sistema de certificação nacional da qualidade técnica e científica dos testes psicológicos comercializados em nosso país. Essa certificação é atribuída aos testes que atendem aos requisitos técnicos mínimos baseados em regras internacionais: apresentação da fundamentação teórica do teste, de estudos de validade, precisão e padronização e normatização. Ele tem a função de certificar a qualidade de um instrumento psicológico, considerando os critérios mínimos e obrigatórios, estabelecidos com base em parâmetros internacionais (International Test Commission, American Educational Research Association, American Psychology Association, National Council of Measurement), para que seja aprovado para uso na prática profissional), para que seja aprovado para uso na prática profissional. O processo de avaliação dos testes ocorre de maneira similar ao peer review de artigos científicos. Os testes aprovados pelo SATEPSI para uso profissional apresentam normas e estudos sobre validade e precisão para a nossa população. Esses testes são mais confiáveis, pois cumprem sua função de avaliação baseada em dados relativos à população brasileira e comprovaram que realmente avaliam aquilo que se propõem medir. 


Embora a lista dos testes aprovados ou reprovados esteja disponível na página do SATEPSI/CFP (https://satepsi.cfp.org.br/testesFavoraveis.cfm), parece que ela é pouco consultada, ou levada a sério, uma vez que alguns testes constantes como reprovados continuam sendo oferecidos e aplicados, sem o menor constrangimento ou sanção. Para isso, basta fazer uma checagem rápida na internet. É possível que essa situação seja devido à formação dos psicólogos para atuar na área de avaliação psicológica, com maior ênfase em teorias e técnicas de avaliação psicológica, em detrimento dos princípios de psicometria e que norteiam a elaboração de testes. 


Outro aspecto preocupante diz respeito ao exercício ilegal da profissão de psicólogo. De acordo com o disposto no Item b do §1o do Art. 13 da Lei no 4.119/62, “constitui função privativa do Psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos: orientação e seleção profissional”. A atuação em quaisquer das áreas de especialidade, que consistem em atividades privativas do(a) Psicólogo(a), por uma pessoa que não seja um Psicólogo devidamente inscrito no Conselho de sua jurisdição, constitui exercício ilegal da profissão de Psicólogo.


Concluindo, apesar dos esforços e iniciativas empreendidos pelos diferentes atores da Psicologia no Brasil, ainda existem grandes desafios a serem enfrentados, considerando o número relativamente limitado de testes aprovados para uso do psicólogo, o que poderia explicar o uso de testes não aprovados no contexto organizacional. Não queremos, e não podemos afirmar que os testes não submetidos à análise do SATEPSI não sejam bons, mas o que podemos afirmar com segurança é que suas propriedades psicométricas não foram atestadas por ele. Daí a importância de submetê-los à análise visando à sua aprovação.


O SATEPSI é a única instância responsável pela avaliação e aprovação dos testes psicológicos para uso profissional no Brasil, garantindo a qualidade dos instrumentos e técnicas psicológicas utilizados para isso. Ele visa proteger a sociedade, que se beneficia do trabalho competente de profissionais preparados e comprometidos com a qualidade da avaliação por eles realizada.








REFERÊNCIAS


CRP09 (2015). Exercício ilegal da profissão. Disponível em http://www.crp09.org.br/portal/orientacao-e-fiscalizacao/legislacao/resolucoes-cfp/149-orientacao-e-fiscalizacao/orientacao-por-temas/exercicio-ilegal-da-profissao.


Faid, Cristina, Alves, Iraí Bocatto (2018). Contribuições do Satepsi para Avaliações Psicológicas Compulsórias (Trânsito, Porte de Arma e Concursos Públicos). Psicologia: Ciência e Profissão.Vol. 38 pp: 50-59. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. Disponível em https://doi.org/10.1590/1982-3703000208851.


Lei no 4.119/62, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em

psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Disponível em 

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=16097E5F6B7539BCED5E02B9B2673F96.proposicoesWeb2?codteor=336061&filename=LegislacaoCitada+-PL+5816/2005.


Resolução No 002, de 23 de março de 2003. Define e regulamenta o uso, a elaboração e a comercialização de testes psicológicos e revoga a Resolução CFP No 025/2001. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. Disponível em https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/05/resoluxo022003.pdf


Resolução No 009, de 25 de abril de 2018. Estabelece diretrizes para a realização de Avaliação Psicológica no exercício profissional da psicóloga e do psicólogo, regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos – SATEPSI e revoga as Resoluções No 002/2003, No 006/2004 e No 005/2012 e Notas Técnicas No 01/2017 e 02/2017. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-9-de-25-de-abril-de-2018-12526419


Wechsler, Solange Muglia, Hutz, Claudio Simon & Primi, Ricardo. (2019). O desenvolvimento da avaliação psicológica no Brasil: Avanços históricos e desafios. Avaliação Psicológica, 18(2), 121-128. Disponível em

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