Personalidade e adesão ao tratamento de doenças crônicas: o HG no contexto da saúde

 


Desde a década de 1970, estudos sobre personalidade vêm sendo conduzidos com o objetivo de verificar se caraterísticas de personalidade diferem quanto ao sexo, idade, inteligência, temperamento, comportamento social, etnia e cultura do indivíduo. Fatores de risco à saúde como tabagismo, marcadores metabólicos e inflamatórios, doenças crônicas, sistema imunológico, indicadores de saúde funcional e, mais recentemente, mortalidade, também têm sido alvo de estudos de pesquisadores contemporâneos. A relação entre personalidade e sistema imunológico tem sido hipotetizada desde meados da década de 1970, visando a entender como a personalidade pode afetar o início e o curso de doenças crônicas. Várias dimensões da personalidade, incluindo depressão, otimismo, hostilidade, estilo de atribuição e extroversão-introversão têm sido relacionadas a parâmetros imunológicos ou de imunidade. 

A associação entre traços de personalidade e aspectos relacionados à saúde foi observada nas diferenças de personalidade entre pacientes com doenças crônicas, entre elas HIV/aids, nos comportamentos de risco à saúde, na predisposição à morbidade e na resposta do sistema imunológico e no rebaixamento da capacidade de planejamento, persistência e autocontrole, que podem favorecer o comportamento de risco de contágio e  transmissão de doenças, além de influenciar a adesão ao tratamento e a programas de controle da doença. Apesar das indicações teóricas e empíricas de que a personalidade exerce influência sobre a saúde e afeta a imunidade do indivíduo, há relativa escassez de investigações sobre esse tema, em comparação com estudos sobre os efeitos do estresse e da depressão. Também há relativamente poucos estudos sobre a influência da personalidade sobre a adesão ao tratamento, que constitui um grande obstáculo para o tratamento de doenças crônicas. Embora a não adesão ao tratamento seja um fenômeno muito comum, nem sempre é possível identificar um conjunto de variáveis sociodemográficas ou características de personalidade capazes de predizer com precisão se o paciente irá seguir ou não as recomendações médicas.

Durante muito tempo questionou-se a existência de traços de personalidade e a possibilidade de eles preverem o comportamento. Graças à força computacional e ao surgimento de novos métodos de pesquisa, foi possível comprovar a existência de traços de personalidade e reconhecer sua capacidade de predizer o comportamento humano, desde que se conheça o contexto no qual operam e se utilize medidas específicas. A compreensão do ser humano é complexa, pois exige uma abordagem holística, com a integração da personalidade, cognição, emoção e outras funções do sistema nervoso central. Pesquisas dessa natureza são extremamente desafiadoras, pois variáveis particularmente complexas precisam ser consideradas e controladas. Entretanto, a despeito dessa complexidade, abriu-se uma oportunidade para uma melhor compreensão da influência da personalidade sobre a saúde do indivíduo por meio de um projeto de pesquisa com pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA). 

Vários instrumentos têm sido utilizados com o objetivo de mapear o potencial, descrever, predizer e entender o comportamento humano no contexto da saúde, com especial destaque para instrumentos de avaliação psicológica com base na taxonomia dos Cinco Grandes Fatores (CGF), popularmente conhecida como Big Five. Embora esse modelo seja amplamente utilizado nas pesquisas na área da saúde, em um estudo sobre personalidade de pacientes portadores do vírus HIV/aids, com foco na adesão ao tratamento antirretroviral optou-se por utilizar a perspectiva teórica psicodinâmica de Szondi, por meio do teste HumanGuide.  Uma vez que essa teoria considera que as escolhas do indivíduo são determinadas por necessidades pulsionais, as quais podem  tanto impactar a manifestação de doenças como a adoção de comportamentos autodestrutivos, como adquirir formas sublimadas, socialmente positivas e promotoras da saúde e bem-estar, buscou-se verificar sua influência sobre comportamentos promotores e/ou mantenedores da saúde, como a adesão ao tratamento. Tanto o modelo dos CGF, como a teoria pulsional de Szondi, estabelecem que um importante elemento da adaptação do indivíduo ao seu meio ambiente diz respeito ao autoconceito, pois ele influencia a percepção seletiva que o indivíduo faz da realidade. É por meio dessa percepção seletiva que as informações obtidas são representadas em consonância com os traços de personalidade, dando uma sensação de coerência ao indivíduo.

Com isso em mente, foi realizada uma pesquisa com o objetivo de avaliar as características de personalidade de pacientes portadores do vírus HIV/aids, em relação a padrões gerais de comportamento e atitude associados  à adesão à terapia antirretroviral (TARV) e avaliar a associação dessas características com os mediadores psicológicos  percepção de suporte familiar em HIV e expectativa de autoeficácia para seguir o tratamento, e o impacto deles na adesão à TARV. O estudo foi conduzido no ambulatório de um hospital especializado em doenças infectocontagiosas na cidade de São Paulo, com 66 PVHA (44 homens e 22 mulheres), todos em tratamento antirretroviral. 

As evidências obtidas no estudo indicaram que a personalidade pode influenciar a saúde do indivíduo por meio da associação com mediadores psicológicos, como a percepção de suporte social e expectativa de autoeficácia, que, por sua vez, afetam o comportamento de adesão, aferida por meio dos marcadores biológicos linfócitos T CD4+ e carga viral. O otimismo e a sociabilidade, que correspondem ao fator Contatos no HumanGuide, tidos no senso comum como importante fator no enfrentamento de situações adversas, parecem de fato contribuir para a saúde do indivíduo, ao promover o estabelecimento de uma rede de contatos provedora de apoio e suporte, importante para a adesão ao tratamento. A necessidade de estabelecer contatos próximos com as pessoas, visando à satisfação de necessidades afetivas, expresso por meio da acentuação do fator Sensibilidade, também favorece a percepção positiva de suporte social, associada ao sentimento de pertencimento. Indivíduos com necessidade de controle, com tendência à rigidez e ruminação (acentuação dos fatores Estrutura e Estabilidade, respectivamente), apresentaram percepção negativa de suporte social, possivelmente devido ao seu senso crítico, desejo de que as coisas aconteçam à sua maneira, ao humor mais sombrio e apego ao passado. A preocupação com a imagem e o receio da estigmatização, correspondente ao fator Exposição no HumanGuide, por sua vez, podem diminuir a crença na própria capacidade de seguir o tratamento quando o indivíduo está em contato com pessoas estranhas. O agenciamento do autocuidado, representado pelo fator Qualidade, constituiu relevante fator promotor da adesão ao tratamento, tendo apresentado correlação positiva significativa com a contagem de células T CD4+. 

Dada a relativa escassez de investigações que associam a personalidade à adesão ao tratamento de doenças crônicas, em comparação com o número de investigações sobre os efeitos do estresse e da depressão sobre a saúde, adotou-se uma perspectiva diferente,  que visou investigar a influência contínua de determinadas características de personalidade sobre fatores promotores da saúde do indivíduo, como a adesão ao tratamento prescrito. O estudo sobre a influência da personalidade sobre a adesão ao tratamento antirretroviral teve dois ineditismos: abordar a influência da personalidade sobre os mediadores psicológicos que influenciam a adesão ao tratamento antirretroviral e utilizar o teste HumanGuide para avaliar a personalidade no contexto da saúde. 

Considerando a multideterminação da conduta de adesão ao tratamento, a compreensão dos aspectos que podem contribuir para melhorar a saúde e a qualidade de vida do indivíduo deveria considerar a integração de personalidade e saúde, pois essa integração pode fornecer pistas importantes para o aprofundamento da investigação dos determinantes da adesão, oferecer informações relevantes aos profissionais da saúde para uma abordagem e acolhimento personalizados de pacientes portadores de doenças crônicas, como é o caso do HIV/aids, e para o  planejamento de uma intervenção bem-sucedida junto a eles.


Caso você tenha interesse em saber mais sobre esse estudo, acesse o link para o artigo Personality, Psychological Mediators and Adherence to ART: A Correlational Clinical Study


https://www.scirp.org/journal/paperinformation.aspx?paperid=120593







Comentários

  1. Interesting findings! They also deepen the understanding of Szondi's theory.

    To see this from another perspective... The professor C Dweck published the book Mindset based on her research. The core of her findings is that she categorised people in two groups. Fixed mindset and Growth mindset. The first group was rigid to changes. The other more openminded. Worthwhile reading the book, because it gives crucial insights.

    Anyhow the consultant Graham Williams in England categorised the first group in another way. Can't do (lack of self-confidence) and Won't do (lack of control). The second group he calls Can do, i.e. they are openminded and normally investigate, if new options can be relevant for them...

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